A reforma dos ministérios passa a tomar mais corpo conforme o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) formaliza suas intenções aos diferentes cargos. Sendo projetada há meses, mas tendo tomado voz no último dia 26, o loteamento dos cargos da administração pública já começa com duas colocações importantes e nomeadas na última semana, uma delas a mais aguardada — Ciro Nogueira na Casa Civil, cuja posse será nesta quarta-feira (4), feita de forma isolada. Na manhã de hoje (3), o general Luiz Eduardo Ramos tomou posse nesta como novo ministro da Secretaria Geral da Presidência da República.
Fustigado pela pandemia, pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, pelas acusações de crimes de responsabilidade, além de inúmeras saídas ministeriais que impactaram diretamente na atuação e comunicação federais durante a crise sanitária, o governo vê na reforma uma chance de se fortalecer dentro do poder legislativo. Além disso, a libertação e reabilitação eleitoral do ex-presidente Lula trouxe de volta a existência de um oponente político de força até então inexistente no possível pleito atual.
##RECOMENDA##
O Brasil se caracteriza por conjugar o sistema de governo presidencial com a arena pluripartidária em duas casas legislativas: a câmara baixa, dos Deputados, e o Senado Federal, que é a câmara alta do Congresso Nacional. Isso faz com que quem quer que seja o presidente da República, seja qual for o seu espectro ideológico — esquerda ou direita, conservador ou liberal — tenha que, de tempos em tempos, contemplar os interesses dos aliados que compõem sua plataforma, para conseguir aprovar a legislação e interesses de governo no parlamento. À essa prática, os cientistas e analistas dão o nome de “nova política”.
A relação com o Executivo ainda é de maioria, mas precisa de reforços considerando a aproximação ao encerramento das atividades da gestão e as eleições de 2022. Para direcionar o tópico da reforma ministerial, o LeiaJá convidou o cientista político Elton Gomes, entrevistado desta reportagem.
Segundo Gomes, esse modelo sistêmico acontece com Bolsonaro quando ele passa a ficar mais ancorado nos partidos do chamado “Centrão”, grupo de quatorze legendas, com aproximadamente duzentas cadeiras na câmara baixa do Congresso.
“A grande reviravolta do mandato de Bolsonaro tem a ver com a saída do ex-ministro (Sérgio) Moro, que saiu fazendo graves acusações ao governo; e também com a eleição dos atuais presidentes das duas casas legislativas, Rodrigo Pacheco (DEM) no Senado e Arthur Lira (PP) na Câmara dos Deputados. Eleições essas às quais o presidente da República e sua equipe trabalharam favoravelmente. Naquele momento ele já estava muito mais comprometido com esses partidos do que do que convencionou para ele admitir. Diante da necessidade de conseguir aprovar algumas pautas, já que em 2022, ano de eleição, ninguém quer aprovar nada, o apoio político é conveniente. Por outro lado, no Senado ele encontra muitas reticências. A CPI da Covid que hoje desgasta o governo partiu de lá”, elucida inicialmente.
O que acontece com a reforma ministerial do governo Bolsonaro é algo comum aos presidentes brasileiros: lotear cargos, ou seja, entregar cargos da administração pública para os partidos, de acordo com o potencial de voto que eles podem garantir nos projetos de interesse do Executivo nas duas quadras do Congresso. Essa negociação que começa com Ciro Nogueira, um ministro da articulação política e responsável pela aproximação com o Congresso, encerra a fase do governo, que persistiu até um pouco antes da pandemia, de ser “antissistema” e de colocar a base militar para negociar com os congressistas.
“Pressionar a Câmara e até a Suprema Corte rendeu para Bolsonaro obstáculos políticos. Muito embora ele se credibilizasse diante da sua militância mais orgânica, acabou ficando prejudicado diante dos outros poderes, que reagiram. Rodrigo Maia trancou a pauta, a Suprema Corte criou um colete com o inquérito dos atos antidemocráticos. Agora, Bolsonaro adere à normalização das atividades políticas no Brasil, que é o esquema de vergonhas e trocas que caracteriza a relação do Executivo com o Legislativo”, continua o especialista.
Elton questiona, ainda, a origem dessa supostamente tardia mudança ministerial, realizada no pico da crise pandêmica e sob índices altos de rejeição do governo: “A grande questão é saber se Bolsonaro foi alguém que perdeu uma grande oportunidade por não ter feito isso desde o começo do seu governo, fazendo um “toma lá, dá cá” com os partidos antes que as condições econômicas e políticas se agravassem e antes da libertação de Lula, ou se ele foi racional e estratégico e conseguiu aprovar aquilo que era mais importante sem ter que fazer tantas negociações com as bancadas temáticas e nem entregando ministérios de portas fechadas aos apoiadores do Centrão”.
Em uma análise contínua, o cientista identifica os meios-termos e o que caracteriza o momento da reforma ministerial. Confira na entrevista abaixo:
— Elton Gomes, doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor universitário.
LJ: Ainda sobre a escolha de uma reforma ministerial a um ano e dois meses das próximas eleições: o que mais, no histórico político de Bolsonaro, justifica a busca por esta coalizão?
EG: Nem ele foi completamente tolo por não montar uma coalizão logo de princípio e nem foi um grande gênio da estratégia política por ter demorado tanto. É um presidente com origem no baixo clero e que não tinha experiência em cargos executivos, nem tinha um movimento político orgânico nacional (quando se elegeu). Eram várias franjas bolsonaristas: o antipetismo, a ala ideológica, o núcleo liberal. Isso fez com que ele não tivesse recursos políticos necessários para poder montar e principalmente gerir uma coalizão de governo bem sucedida. Quando ele resolveu fazer isso foi com a pandemia e o seu projeto foi muito prejudicado. Bolsonaro também pensava criar um novo partido no qual ele fosse o cacique, razão pela qual ele deixou o PSL, que já tem dono (Luciano Bivar), e no Brasil os partidos têm dono.
A única forma dos interesses da República conseguirem a maioria é através da composição e manutenção de alianças que passam pelo loteamento de cargos e agenda dos parlamentares em seus estados de origem, o que Bolsonaro já faz, mas ele ainda não tinha distribuído os cargos de primeiro escalão. Provavelmente, outros atores do PTB, do DEM e MDB deverão ocupar cargos importantes da administração federal, já para poder credenciar Bolsonaro a aprovar algo importante e torná-lo mais forte na disputa do ano que vem. Esse apoio ele não teve em 2018, pois o Centrão estava todo com Alckmin.
LJ: O impeachment de Bolsonaro é uma tese muito vocal, mas já considerada pouco exequível. Como fica a chance dessa exoneração com os novos rostos na administração pública?
EG: Praticamente se enterra a chance do impeachment com Ciro Nogueira na Casa Civil. As chances já eram muito baixas, na verdade, mas há essa ênfase por ele possuir uma oposição ativa e ter se desentendido com a Suprema Corte e atores legislativos, além da classe artística. A legislação que configura o impeachment precisa de 343 deputados votando favoravelmente ao afastamento do presidente da República para que ele possa ser julgado pelo Senado; e também de uma prerrogativa monocrática, exclusiva do presidente da Câmara dos Deputados. Ou seja, o presidente precisa ser inimigo político do presidente da Câmara. E para se manter no poder,o PR precisa de 171 deputados lhe apoiando, o que é muito pouco. Se nem isso ele tem, é porque o governo já acabou, na prática.
Foi o que aconteceu com os ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff, que não tinham mais esse quantitativo de apoio nem na câmara baixa, nem na câmara alta do Congresso. Antes tinha Rodrigo Maia na presidência, mas ele nunca pautou o impeachment pela falta de votos, pois sabia que ia perder. Além do loteamento, Bolsonaro é aliado de Lira, que chegou à cadeira favorecido pelo próprio presidente.
LJ: Essa aproximação mais legislativa e menos militar, gera algum tipo de atrito com as Forças que compõem o governo Bolsonaro desde o seu princípio?
EG: Por um lado, gera uma animosidade, porque não existe redução voluntária de poder e de renda; toda vez que alguém ganha, outra pessoa perde. Mas também não será um jogo de soma zero, em que ele só vai ganhar plano central se perder o apoio dos militares. Essa queda de braços está aí desde o começo do governo. Antes do Centrão entrar na jogada, os militares disputavam o poder com a ala ideológica do governo, e as Forças ganharam. Só Damares ficou; saiu Weintraub, saiu o assessor (Arthur), saiu o secretário da Cultura (Godoy), os da Saúde. Ciro, que marca essa troca, não tem experiência no Executivo, mas tem um enorme trânsito entre os parlamentares e não está entrando à toa, mas porque oferece ao governo uma coisa que ele precisa muito, que é quebrar as resistências no Senado e garantir um apoio mais aberto a Bolsonaro.
Nogueira diz assim: "eu tenho a chave do Senado se você me der esse ministério e tudo aquilo que vem com ele: verbas, cargos, a exoneração de adversários, a nomeação de aliados, influência, prefeituras aliadas beneficiadas. Aí, te dou caminho para fazer o que você tem condições e também consigo criar um espaço na agenda do Senado”. Assim, Ciro resolve a vida do governo e fica tranquilo no cargo até 2022. Com essa negociação, os militares vão perder poder, vão se frustrar com isso, vão reagir de alguma maneira, mas não acho que Bolsonaro perca o apoio. A única diferença aqui é a troca do preço, pois o Centrão cobra muito alto para manter o apoio.
LJ: A reforma pode acalentar mais a economia, que já visa uma recuperação até o ano que vem?
EG: Os principais indicadores e analistas falam em uma tendência à forte retomada da economia brasileira causada pela demanda reprimida. Espera-se uma recuperação acentuada já inclusive com alguns setores da atividade econômica chegando a níveis próximos ou chegando a níveis pré-epidêmicos. Pode ser um trunfo a favor do Governo. Bolsonaro quer usar isso para conseguir um ambiente político benéfico e a diminuição da sua rejeição. Porque, no fim das contas, a CPI da Covid, os crimes de responsabilidade, as acusações de corrupção são menos importantes para o cidadão comum do que suas condições de vida. As pessoas querem saber de combustível mais barato, de taxas de energia elétrica mais praticáveis, transporte público normalizado, alimentação decente.
Essa recuperação econômica já está vindo pro mercado, principalmente imobiliário e o de empréstimos. Os empresários já pegam dinheiro emprestado para investir, mas não se sabe se até outubro de 2022 isso vai conseguir se reverter em uma melhoria efetiva das condições do povo. Mesmo que gere uma inflação, o governo precisa dessa retomada para obter um cenário econômico mais propício, junto ao carisma populista de Bolsonaro que precisa conseguir contrapor o carisma de Lula. Sem isso, a reeleição encontra um cenário desfavorável.