Jorge dos Santos de Souza, 34 anos, conhecido como Salve Jorge, saiu da cidade de São Luís, no Maranhão, para tentar uma vida nova em Outeiro, distrito de Belém, no Estado do Pará, com a mãe e 15 irmãos. Ele tinha apenas 21 anos e deixou para trás um filho pequeno. Não conseguiu arranjar emprego. Como forma de ganhar dinheiro rápido, envolveu-se no crime e acabou sendo preso. Quando cumpriu uma parte da pena, conseguiu regime aberto. Constrangido com tudo o que aconteceu, para não desapontar mais ainda a mãe, ele resolveu ganhar o mundo das ruas. Nunca mais voltou para casa.
Seus primeiros dias nas ruas foram em Icoaraci, também distrito de Belém, com hippies que ficavam embaixo do trapiche da orla. Por causa de uma namorada, Jorge se mudou para o bairro do Telégrafo, próximo à região central da capital paraense. Era para ser apenas um encontro na praça Brasil, mas ele não voltou mais para Icoaraci.
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Hoje, Salve Jorge sobrevive cuidando de carros em frente ao campus da Universidade Estadual do Pará (Uepa), na rua Djalma Dutra, catando latinhas e fazendo favores. Com o dinheiro que ganha às vezes consegue comprar algo para comer. Também busca ajuda de alguns estabelecimentos e conhecidos da vizinhança. “Tem restaurante que eu vou lá e peço se não tem nada para comer e eles me dão”, conta Jorge.
Sujeitos invisíveis, os moradores de rua retratam a exclusão social. Segundo o psicólogo Marcio Valente, professor doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), muitos passam a compor um cenário urbano. “Essas pessoas se confundem com o cenário. Elas vão virando fundo, e sempre quando somos fundos da vida de alguém a gente some. A gente vira cenário. Se a gente nunca vira figura, não se define. Essas pessoas se confundem nesse processo, elas vão se perdendo”, disse. “Por conta de passarmos todos os dias pelo mesmo local, tem vezes que enxergamos essas pessoas e outras vezes, não. Nesse ponto, ocupando esse lugar da cidade, vão se tornando tão comuns.”
Para tomar banho, Jorge usa a torneira de um posto de gasolina. A vizinhança tem um grande apreço por ele, sempre muito educado e gentil. Ele diz que já chegou a fazer tratamento em uma clínica de reabilitação em Marituba, mas não deu certo.
Jorge não tem um canto fixo para dormir, mas sempre anda com uma mochila com menos de meia dúzia de roupas e alguns pertences. “Gosto de andar com minhas coisinhas, enquanto não me roubam”, disse.
O apelido Salve Jorge vem da novela que passava em 2012, na Rede Globo, chamada “Salve Jorge”. “Foi o pessoal mesmo da rua que colocou, por causa que na abertura da novela gritava SALVE, JORGE”. Seu corpo é todo musculoso e cheio de cicatrizes. As cicatrizes são da infância e de um atentado que sofreu quando dormia nas casas abandonadas da Vila da Barca, bairro da periferia de Belém.
Jorge relatou que perdeu o contato com os irmãos. Um morreu em São Paulo, outro em um acidente de ônibus em Outeiro, disse. O caçula mora em Outeiro. Faz tempo que Jorge não visita a mãe. Ele não tem certeza se ela ainda está viva.
No dia da entrevista, estava deitado em frente à Fundação Curro Velho, nas margens da baía do Guajará, quando recebeu a proposta de um conhecido das ruas de furtar uma loja de peças de carro e recusou. “Nem se me dessem mil reais, já fiz muita coisa errada nessa vida, mas estou me esquivando desse tipo de coisa”, disse, lembrando seu passado que ocasionou em prisão. Futuramente, afirmou, pretende tirar identidade, CPF, ter um trabalho, tirar fotos para os documentos, cortar o cabelo e sair dessa vida.
Rede de amparo é deficiente
O psicólogo e professor Marcio Valente explica que não existe uma resposta concreta para as pessoas acabarem indo morar nas ruas. Mais simples é falar sobre as coisas de ordem macro, psicossociais. “As pessoas que perdem suas moradias, caso elas não tenham uma rede social de amparo, e a rede social de amparo estatal não é eficaz, essa pessoa vai naturalmente parar na rua. E uma vez na rua, vai ficar próximo de lugares que ofertem para essa pessoa bens de consumo. Quando eu digo bens de consumo não é comprar um celular. É bens de consumo tipo de alimentos, afeto, ela vai ficar próxima a esses lugares. Dificilmente ela se afasta desses lugares”, explica o psicólogo.
Marcio esclarece por que essas pessoas procuram os centros da cidade para habitar. “Esses espaços são de grande circulação, espaços de visibilidade. Dificilmente encontram-se essas pessoas dormindo em becos muito entocados. Os becos muito entocados são onde as pessoas são assassinadas, elas morrem, onde ninguém pode ser visto”, observou.
Para o psicólogo, a percepção que as pessoas têm da rua é relacionada ao perigo. “Às vezes a gente não entende que a rua também é o lugar da possibilidade. Então de alguma forma essas pessoas vão carregar esses preconceitos, que não necessariamente são ruins, mas em algumas circunstâncias podem ser. Os nossos preconceitos vão desde querer ajudar essas pessoas nessa condição. Ou se incomodar com elas, sujando e excluindo do convívio”, diz o psicólogo.
Marcio Valente, que já trabalhou no Ministério Público, relatou um fato curioso: “Foi quando uma pessoa com histórico de morar na rua não queria dormir na cama do alojamento, do abrigo. Ele gostava de dormir olhando para o céu, isso gerou um problema. Tentamos negociar com ele. A instituição tem o dever de dar as mínimas condições para aquele indivíduo, não poderíamos deixar ele dormir no chão”.
Segundo Marcio, há indivíduos que preferem viver nessas condições. “Tem pessoas que se eu oferecer uma casa, não vão querer, porque a casa vem com obrigações, uma rotina de trabalho, ser um assalariado, e isso traz outras obrigações e tem um preço. Elas conseguem fazer esse processo. Alguns não se enquadram a esse padrão, ou são mais saudáveis que nós, menos domesticáveis ou mais resistentes.”
Ele diz que é muito importante o meio acadêmico promover atividades e trabalhos voltados ao meio social, como olhar as pessoas em situação de rua. “A gente quer mudar o mundo, mas precisamos fazer parte da realidade, e essas pessoas fazem parte dessa realidade. Sempre tem um grupo excluído do maior.”
No ano de 2016, a Universidade da Amazônia promoveu uma sarau para todos os alunos do curso de Psicologia. Foi um evento que durou o dia todo e mobilizou toda a universidade. Um grupo específico escolheu tratar de pessoas em situação de rua.
Os alunos queriam fazer um estudo sobre quem era o “morador de rua”. E daí surgiram os questionamentos. “Quem são essas pessoas? Por que moradores de rua? Morar é um direito? “Ninguém mora na rua, a pessoa que está na rua não está tendo a acesso a um direito à moradia que é previsto por lei, um princípio fundamental da nossa Constituição. Então não existem moradores de rua, existem pessoas que estão tendo os direitos violados de moradia”, exemplificou o professor para aquele grupo.
O trabalho foi intitulado “Os invisíveis”. Nessa pesquisa, os alunos fizeram entrevistas e encontraram inúmeras razões para as pessoas saírem de casa, desde brigas familiares, até sonhos que acabaram, crises econômicas, pessoais. Muitos entrevistados falaram que eles não costumavam dormir e que a vida na rua exigia entorpecimentos. “Que em geral a vida exige, desde sair para beber, comer, ir para festa. Na rua não é diferente, em geral a droga mais comum e a mais popular de todas é a bebida alcoólica. A famosa buchudinha. Dificilmente vai cheirar pó, isso é caro”, diz o professor. Os alunos decidiram criar uma página no facebook - “Os invisíveis” -, vinculando as entrevistas a histórias mais amplas, e até encontraram conhecidos das pessoas que vivem na rua.
Reportagem: Trayce Melo.
Edição de texto: Antonio Carlos Pimentel.
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